Qual a importância do programa “A Questão Colonial” estar inserido na programação da Temporada Portugal-França?

Desde a sua génese, a retrospectiva “A Questão Colonial” procura reflectir, com e através do cinema, sobre os modos como as histórias recentes dos dois países se cruzam e, em particular, a descolonização do continente africano a partir dos anos 1950. Desde logo, a coincidência temporal entre o fim de Guerra da Argélia e o início da Guerra Colonial portuguesa há sessenta anos, mas também a subsequente vaga da emigração portuguesa para França, em larga medida motivada pela guerra, e que ainda hoje marca as vivências das comunidades nos dois países.
Essas relações na verdade concretizam-se depois no corpo dos próprios filmes, com o interesse e a solidariedade que levam cineastas Franceses, como Jean Rouch, Mario Marret, Marceline Loridan-Ivens ou Bruno Muel a filmar as lutas pela independência nos países lusófonos. E há a posição muito particular de Argel neste contexto, capital da Argélia livre que rapidamente se torna refúgio de exilados, ponto de encontro dos actores políticos da descolonização, como vemos no filme Alger, Capitale des Révolutionnaires, co-realizado por Gordian Troeller e Marie-Claude Deffarge, mas também dos cineastas que constroem a memória desse movimento.

 

Enquanto curadora desta retrospetiva de cinema francês e português, como foi cruzar a diversidade destas duas representações cinematográficas para as mostrar aos espetadores no Doclisboa?

Antes de ser curadora, sou eu própria franco-portuguesa, e esta dupla história, revisitada aqui pelo cinema, é fundamental na minha construção pessoal. Curiosamente, os meus pais conheceram-se em 1975 no Porto, quando o meu pai, Francês regressado uns anos antes de um périplo solitário em África que terminara abruptamente em Brazzaville, devido à Guerra de Angola, decidiu passar por Portugal e perceber o que estava a acontecer desde o 25 de Abril. Rapidamente formaram o projeto de partir para Angola e voluntariar-se para as campanhas de alfabetização do MPLA. As dificuldades em conseguir os documentos necessários para o casamento e a viagem acabaram por ditar a sua permanência na Europa, quando Angola, então a braços com a guerra civil, fechou as fronteiras por questões de segurança. Desse sonho abortado nasceu outro, de fundar família, de que sou o primeiro fruto.

A necessidade, premente, de repensar este passado francês e português, mas sobretudo angolano, moçambicano, guineense, argelino, maliano, senegalês, enfim, Africano, é hoje evidente, não sou só eu que o digo, pois esse movimento ganhou visibilidade e atinge todas as camadas da sociedade. Premente também pelo evidente crescimento de vozes, movimentos e políticas negacionistas na Europa, que nos obriga a assumir um papel activo na preservação, divulgação e discussão pública destes filmes.

 

Nesse cruzamento, como decorreu o processo de seleção de filmes para este ciclo?

A seleção de filmes foi sobretudo uma descoberta. Partindo de um núcleo relativamente pequeno de filmes e autores, fui pesquisando e sobretudo construindo um diálogo com investigadores e programadores que se debruçam sobre estas cinematografias. As redes de solidariedades, que no passado permitiram que se fizessem muitos dos filmes que mostramos, repetem-se hoje para permitir que sejam vistos. Os filmes que mostramos nesta retrospectiva, realizados contra a corrente – contra a corrente do sistema colonial e neocolonial, mas sobretudo contra as lógicas de dominação cultural no cinema, contra o mercado dos filmes ou dos autores e em luta pela existência dos novos cinemas africanos e transcontinentais.

O programa vai ao encontro da diversidade dos gestos dos cineastas que confrontaram a história das (des)colonizações, seja um René Vautier nos maquis argelinos ou um Abderrahmane Sissako em busca do seu próprio passado na figura de um amigo angolano de quem perdeu o rasto desde os tempos de estudante na URSS, ou ainda Ruy Guerra, bem próximo do novo poder moçambicano e de Samora Machel, fazendo o processo dos colaboracionistas do antigo regime, ou mesmo Assia Djebar reconstruindo num canto poético a história moderna do Magrebe a partir de imagens de arquivo.

Vai também ao encontro – e foi essa aventura que me motivou – ao encontro de uma “outra” história do cinema, uma história que começa quando a liberdade se conquista, e é essa a história de Cabascabo, o primeiro filme de Oumarou Ganda que, depois de ser fuzileiro na Guerra da Indochina, estivador no porto de Abidjan e actor em Moi, un Noir de Jean Rouch, realizará o seu filme no Níger com a ajuda do Cineclube de Niamey. Ou a história do artista António Ole, que realiza Carnaval da Vitória no primeiro ano da independência angolana. Ou do já citado poeta e cineasta Ruy Guerra, que regressa a Moçambique para filmar o nascimento da nova nação, as suas feridas e contradições.

Essa história plural e frágil – ou antes fragilizada pelo esquecimento, o abandono, a falta de meios… – que há já duas décadas Margarida Cardoso esboçava em Kuxa Kanema, a história de um cinema que queria devolver ao povo a imagem do povo.

 

Sobre o passado colonial de França e Portugal, o cinema tem o poder de contar a verdade e de furar a censura?

Em tempos a censura do Estado Novo, mas também a lei Laval em França, que perdurou muito além da Segunda Guerra Mundial e foi particularmente dura com o cinema que contestava o regime colonial e silenciou ou forçou à clandestinidade muitos filmes, dos quais destacamos Afrique 50, de René Vautier, obra que levou inclusive à prisão do autor, ou Catembe, de Manuel Faria de Almeida – que partia de uma encomenda mas acabou por se tornar o filme português mais “cortado” pelos censores.

Mais tarde, outras formas de censura, política e de estado, ou mais insidiosas – de ordem económica por exemplo – foram-se exercendo sobre os cinemas africanos, ao sabor das crises políticas que as novas nações sofreram e ainda hoje sofrem.

Actualmente, o cinema luta contra o tempo e a falta de meios. Os filmes degradam-se, os processos de preservação e arquivo são morosos, caros e sujeitos à constante necessidade de adaptação aos novos formatos de exibição – sem o que correm o risco de se tornar arquivos “mortos”. Emblemática será nesse sentido a exibição de Nossa Terra, o filme realizado por Mario Marret nas zonas libertadas da guerrilha do PAIGC, desaparecido durante décadas e só agora reencontrado nos arquivos da Newsreel em Nova Iorque. O filme é aliás apresentado com as obras em parceria de Sónia Vaz Borges e Filipa César, cujo trabalho de criação se vêm articulando com o resgaste de filmes perdidos do início do cinema da Guiné-Bissau, como é o caso da seminal obra colectiva O Regresso de Amílcar Cabral, ou dos registos das escolas-piloto mostrados em Navigating the Pilot School. No caso das cinematografias africanas, a situação geral dos filmes e da sua conservação é mesmo muitíssimo mais grave, e dificilmente se resolverá sem um justo gesto de reparação histórica.

Enfim, eu diria que furar a censura não é algo que ocorre num único tempo ou lugar, é um trabalho e uma luta travada por cineastas, técnicos, arquivistas, programadores, críticos e espectadores, em todas as sessões e todos os debates, em todos os momentos em que os filmes acontecem.

 

De que forma prevê a continuidade das relações entre França e Portugal na arte e na história?

A relação entre Portugal e França é, do meu ponto de vista, corporizada sobretudo pelos milhões de Portugueses que vivem em França, cujo legado político e cultural é sistematicamente ignorado dum lado e doutro dos Pirinéus. Exemplo dessa lacuna é seguramente a falta de reflexão acerca da Ditadura e da Guerra Colonial como motivos políticos de uma migração que, ainda hoje, se opta por qualificar de «económica». Quanto à relação entre francófonos e lusófonos, um território porventura ainda mais entusiasmante pela sua extraordinária riqueza e pela promessa que nela se adivinha, passará certamente pela abolição de barreiras fronteiras que fazem da Europa uma fortaleza envelhecida e decadente e condenam a humanidade à repetição dos mesmos erros. É esse sonho
internacionalista que me anima, entre muitas outras pessoas e filmes, como em 7 cortes de cabelo no Congo, o filme que, sem sair de uma salão de cabeleireiro, atravessa tempos e oceanos de Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gustavo Melo e já habitava os estudantes africanos em Paris de Afrique sur Seine, de Paulin Soumanou Vieyra e Mamadou Sarr em 1955.

 

A curadora Amarante Abramovici não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.